17 de agosto de 2011

Um artista muito vivo

Revista Monet 86 - Maio 2010

por Itaici Brunetti Perez




Estranha festa religiosa no meio da Floresta Amazônica é o pano de fundo para a premiada estreia na direção do ator de sucessos como Cidade de Deus e Auto da Compadecida

MATHEUS Nachtergaele quer mais, cada vez mais. É assim que o ator e agora diretor quer continuar trabalhando. Além da filmagem de uma versão amazonense da peça Woyzeck, estará em Febre do Rato, o próximo filme de Cláudio Assis; Maldito, a biografia de Zé do Caixão; uma peça de teatro chamada 45 Minutos; e na história da vida do carnavalesco Joãosinho Trinta para os cinemas. “Uma doidera!”, segundo o próprio. E aqui na MONET ele ainda fala sobre a experiência na sua estreia como diretor em A Festa da Menina Morta (estreia no Canal Brasil), de sua relação com a espiritualidade e dos cineastas que o influenciaram.

Você escolheu um tema bem polêmico, a religião, para colocar no seu filme de estreia. Qual foi sua principal inspiração?

Eu precisava dizer algo muito urgente que estava dentro de mim. Quando estava fazendo Auto da Compadecida, em uma folga, me levaram a uma festa religiosa onde as pessoas adoravam uns trapos do vestido de uma menina morta chamada Joséfa. Era a “Festa da Menina Joséfa”. Eu não entendi muito bem por que eles adoravam aquele vestido, não entendia muito bem o milagre que eles achavam que tinha acontecido, e isso fez o fósforo acender em mim. A partir daí, achei o ponto inicial para pensar em alguma coisa. O que tinha para ser dito tem a ver com o fato de um ator ser o bode expiatório de uma comunidade. Queria falar sobre isso. O que é um ator? Será que é uma espécie de líder religioso? Será que ele é o bode imolado, grego? Será que ele é um Jesus Cristo? E a partir do evento do vestidinho fui criando personagens e uma vida em volta disso.

O Brasil tem uma diversidade cultural enorme, e muitas vezes desconhecida. Você acha que esse tema é explorado como deveria pelos diretores brasileiros?

O Brasil é um país imenso e o nosso cinema tem que tatear esses lugares todos. Uma grande honra, já que o cinema é o melhor lugar para um país se conhecer. Os tentáculos a gente tem lançado por aí afora. Como diretor, meu tentáculo é no Norte. Mas o Brasil é um país não dito, ainda.

No filme fica evidente a grande presença de artistas amazonenses. Você acha que eles servem de motivação para outros atores regionais?

Espero que sim. Fiz questão de não mudar o lugar, mas sim de estar no lugar. Os atores amazonenses fazem parte deste “estar”. Uma das coisas legais do filme é o fato de ter pessoas, que você nunca viu, interpretando tão lindamente quanto os astros. Fiquei lá dois meses antes de filmar e trabalhei com todos os atores durante um mês, do Daniel de Oliveira ao Pajé Papaguara. Demos trabalho de corpo, de voz, discutimos o texto, discutimos que filme era aquele. De certa maneira não entendo muito bem a diferença de um ator regional e de um ator não regional.

Normalmente, os atores regionais têm menos exposição que os demais...

São todos atores brasileiros, todos eles. Em Tocantins, em Manaus, em Recife, onde for. Não tem por que não filmá-los se o Brasil é tão grande.


A Festa da Menina Morta mostra aspectos interessantes dos seres humanos, como o fato de se apegarem à fé sem nenhum questionamento. Na sua opinião, o que explica essa necessidade das pessoas?

A religião é uma relação do ser humano com o luto. A gente supera a perda de várias maneiras: aos prantos, aos sambas, e a gente vai tentando, vida vira, vida fora, superar e dar sentido ao que não tem sentido. A religião me parece que ocupa este espaço exato. O lugar onde Deus não estaria. A gente se ajoelha e grita porque a fatalidade é um fato.

E como é sua relação com a religiosidade?

Essa é uma pergunta capciosa, mas vou responder de coração. Deus é, Deus não existe! Ele está em cada macaco comendo banana, está nos meus pés envelhecendo, está em um livro na estante, está em uma mulher que te ama. A gente não precisa ir a uma igreja para rezar, basta um colibri passar ao seu lado que você sente Deus perto de você. Não precisa rezar o Pai-Nosso.

Quando surgiu a vontade de dirigir?

Fazer um filme é como um pesadelo. É como alguma coisa que só pudesse ser dita através dele. Se não fosse, você não filmaria, porque as instâncias de fazer um filme no Brasil são tão difíceis, tão complicadas que só realmente em um surto você faz. Um filme é uma exigência da sua alma, não é um desejo burguês. Se não fizer isso, morro.

Quais diretores lhe influenciaram?

Akira Kurosawa, pela capacidade incrível de transformar o cinema em religião. Ingmar Bergman, por transformar o medíocre em grande. Cláudio Assis pela coragem. Guel Arraes pelo rigor divertido. Poderia citar mil nomes, mas não acho que meu filme seja influenciado por nenhum. Quer dizer, na Festa da Menina Morta, acho que tem um pouco de Jorge Bodanzky, que dirigiu um dos filmes mais bonitos que o Brasil já fez e pouca gente viu. Chama-se Iracema – Uma Transa Amazônica, e é de 1976. 

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